29.1.14

A pior noite de Cláudia Prócula – Um conto da província romana da Judéia




Cláudia era uma mulher muito afetuosa e tenra, muito amada por todos os seus servos e servas, ainda mais por seu marido Pôncio Pilatos, que era prefeito da província romana da Judéia. Pilatos era um homem de alto grau consular em Roma, e por isso a ele foi designado governar e administrar a Judéia em nome do imperador. Tudo corria bem na província, nenhum incidente grave ou rebelião de grandes proporções havia ocorrido nos sete anos em que Pilatos governava.

Nos dias de César, Cláudia caminhava alegremente pelos largos corredores do palácio, quando parou em frente a um grande móvel de madeira onde guardava os utensílios de tortura usados pelos soldados para controlar insurgentes.
Em um momento de reflexão lembrou de quando caminhava entre os judeus em um dia de sábado e se encontrou com um homem magro, de aparência pobre e roupas simples. O homem trabalhava uma peça de madeira, que parecia ser uma cadeira, com uma maestria jamais vista antes por ela. Por alguns instantes ela ficou observando aquele trabalho, como em um transe pelos movimentos suaves e a calma no olhar do homem. Trabalhando cada movimento com as mãos e com os olhos , como se aquela fosse a peça mais preciosa que existisse no mundo. De repente ela observa ele largar o instrumento que utilizava na peça e apanhar calmamente um prato com água. Todos os movimentos do homem pareciam ser executados em câmera lenta. O homem imerge a mão na água e como uma concha, despeja a água sobre a peça de madeira e observa pacientemente a madeira absorver a água. E repetia o procedimento em partes diferentes da peça.

-       Rapaz! – disse Cláudia rompendo seu transe.

O homem parecia não ter escutado que ela o chamava e continuou observando a simbiose entre a água e a madeira.

-       Rapaz! Por acaso não escuta? Estou falando com você!
-       A água é capaz de mostrar as imperfeições da peça... Enquanto lixamos com a pedra ou cortamos com a lima, a peça está suja e coberta de pó, mas quando vem a água, podemos tocá-la e sentir suas imperfeições. – disse o homem enquanto olhava atentamente para a peça de madeira.

Cláudia sentiu imediatamente um arrepio da planta dos pés ao alto da cabeça e surpreendia-se em seu íntimo pelo fato de o homem responder a pergunta que ela ainda nem tinha feito:

-       Vejo que domina a carpintaria! Qual é o seu nome?
-       Jesus. – disse sem tirar os olhos da peça.
-       Onde aprendeu isso? – perguntou Cláudia curiosa.
-       Que a água mostra as imperfeições ou a carpintaria?
-       As duas coisas! Com quem aprendeu?
-       Aprendi ambos com o meu Pai.

Jesus parou por um instante, passando a mão sobre a peça, disse:

-       Veja! A peça foi lixada e trabalhada, mas ainda assim apresenta imperfeições. Terá que voltar às mãos e instrumentos do carpinteiro para novamente ser trabalhada, até que fique perfeita e sirva o seu propósito.
-       Mas as imperfeições às quais se refere são imperceptíveis! Eu mesmo não vejo nada! – disse Cláudia impaciente.
-       Eu sei que não vê! Mas o criador da peça percebe quando há algo de errado com ela.

Cláudia ficou confusa, mas extremamente intrigada com as palavras de Jesus e saiu para continuar sua caminhada...

Parada em frente ao móvel no corredor ela lembrou das palavras do homem magro e sujo trabalhando na simplicidade daquela pequena cadeira e pensou se o artesão que esculpiu aquele belíssimo móvel à sua frente havia se atentado ao detalhe de jogar um pouco de água e descobrir as imperfeições.

Naquele mesmo dia à noite Cláudia estava ansiosa, algo a incomodava, algo lhe tirava o sono. Saiu e olhou por uma das janelas do palácio, a cidade estava muito silenciosa. Avistou algumas tochas acessas longe no monte das Oliveiras. Ficou ali por alguns minutos imaginando e lembrando do tal Jesus que havia deixado ela com tanto o que pensar e ao mesmo tempo nada. Deitou-se então na cama vazia, uma vez que Pilatos não costumava deitar-se com ela quase nunca, ou quando se deitava junto de sua esposa, era avançada hora da noite. Adormeceu e começou então a pior noite de sua vida.

Em um sonho ela viu milhares de pessoas, de todas as partes do mundo, chorando e pranteando com lamentos e gemidos como se estivessem sentindo dores. Viu um homem coberto de sangue e carregando uma cruz. A maior parte do corpo ferido e esfolado. Ao redor dele, dentre os milhares que choravam alguns o amaldiçoavam, escarneciam e humilhavam, outros o batiam, cuspiam em sua face e atiravam-lhe pedras. O homem foi aproximando-se dela com o olhar pesado e a respiração densa, olhou em seus olhos e disse:

-       O criador hoje, está jogando água para que possa ver as imperfeições de sua criação.

Depois disso, o homem caiu e padeceu sob os milhares de olhares e rostos agora silenciosos, pensativos. Cláudia aproximou-se ainda mais e pôde reconhecer que o homem caído ali era o carpinteiro que havia encontrado dias antes.

Foi desperta do sonho pelo som de uma multidão ensandecida no pátio do palácio. Levantou-se e olhou pela janela, viu os sacerdotes judeus à frente da multidão e no alto da escada que subia para a porta do palácio, viu o carpinteiro acorrentado ao lado de seu marido, do capitão da guarda e dos guardas romanos. Ela foi tomada de um espanto repentino e um desespero sem igual. Sem saber ao menos do que se tratava a movimentação, pegou um pedaço de papel que estava sobre a mesa no quarto e escreveu uma carta para seu marido. Chamou rapidamente um dos soldados que guardavam a entrada de seus aposentos e o pediu para que entregasse o recado à Pilatos sem demora!
Quando Pilatos desdobrou o papel, estava escrito de uma forma tremida e rápida, pelas mãos de alguém que procurava ter pressa:


‘Não te envolvas com esse justo, pois durante a noite sofri muito por sua causa.’


Erick Freire

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