16.11.18

Cheguei atrasado




Acho que cheguei atrasado. Definitivamente cheguei atrasado em algumas coisas da vida. Cheguei atrasado na fé. Cheguei atrasado no amor. Cheguei atrasado no psiquiatra. Cheguei atrasado no trabalho hoje. Quem chega atrasado geralmente chama atenção. Não quer, mas chama. Não queria e chamei. Quem chega atrasado perde o bom do show. Quem chega atrasado não vê a cortina abrindo, por isso não sabe entender quando ela se fecha. Quem chega atrasado, geralmente, tem um punhado de desculpas e motivos para o atraso. Prefere isso do que simplesmente dizer: ‘Desculpa, me atrasei’. Quem chega atrasado prefere falar do futuro, pensar no futuro, se lamentar pelo passado e se esquece de agradecer pelo presente. Porque afinal de contas, no presente, está atrasado.

Cheguei atrasado um dia desses para buscar meu filho na escola. Me atrasei pra voltar ao normal depois de uns dias cheio de manias. Me atrasei pra fazer tatuagem, agora não dá mais. Um dia desses atrasei meu relógio 10 minutos, só pra ter a sensação que não estava mais atrasado. Resultado, achei que estavam todos adiantados, mas não conseguia enxergar que o atrasado era eu.

Me atrasei pra o ensaio da banda num outro dia. Me atrasei pra dar aula. Me atrasei pra dizer para o meu pai que amava ele. Esse atraso foi ruim, porque ele se adiantou e foi embora. Agora só digo por mensagem, como sempre, atrasado. Como Don Quixote, outro atrasado, me atrasei pra perceber que o moinho de vento não era um gigante. Atrasei outros por causa desse atraso. Eu me atrasei pra entender que a doutrina não protege o mestre, antes o denuncia. Me atrasei para entender que ‘graça’ não é o mesmo que ‘de graça’. Estou neste momento atrasando um monte de coisas que eu tenho que entregar para escrever nessas linhas o quanto eu estou atrasado. Me atrasei pra entender que preciso de ajuda. Preciso de ajuda para chegar a tempo. Chegar no tempo. No tempo do sábio que diz que há tempo pra tudo. Ninguém pode escapar do tempo. Ele existe. Ou melhor, eles existem: os tempos. Existe tempo pra tudo, menos pra se atrasar. Se existe alguém fora do tempo, são esses, os atrasados. Eles vivem num lugar, num espaço em branco que fica entre o desespero e a esperança. Sempre tentando sair desse lugar pra acertar no alvo. Pra cravar os ponteiros do relógio. Sincronizar sua agenda com a agenda do resto do mundo. O tempo é absoluto. O atraso é sempre relativo.

Já estamos no Novembro azul. Queria que ainda fosse o Setembro amarelo. Mais uma vez, estou atrasado.

Erick Freire

27.11.17

É preciso saber morrer



Hoje o dia amanheceu cheio de graça. Enquanto pedalava para o trabalho, ouvindo uma playlist de música que gosto de ouvir quando estou grato, começou a tocar uma música linda dos Titãs que insistia em seu refrão: É preciso saber viver!
Pensei: é preciso mesmo! Mas enquanto continuava pedalando, com um pulgueiro inteiro atrás da orelha, refletia sobre as implicações disso em minha vida. Comecei então a construir uma ideia tão difícil quanto a necessidade de ‘saber viver’. A necessidade de saber morrer.

Gratidão não tem a ver com o dia que amanhece ensolarado ou com o céu nublado, chuva e tempestade de relâmpagos. Gratidão tem a ver com a condição de perceber as mudanças climáticas e entender (ou nem sempre) porque elas acontecem. Gratidão tem a ver com a capacidade de sentir cada gota de chuva molhando a pele ou o conforto dos raios de sol esquentando do frio. Gratidão tem a ver com a vida, mas também com a morte. E quando digo morte, não quero que confunda com o fim de tudo. Quero traçar um paralelo entre perdas e ganhos. Perdas e ganhos são como os dois trilhos de uma ferrovia, andam sempre juntos e se encontram no horizonte. Ora, não é lógico? Só morre quem está vivo. E no contexto da música, é preciso saber viver para que quando a morte chegar você olhe ela nos olhos, sorria e agradeça. Pois toda a nossa vida, tudo que fizemos, os jantares com amigos, as cartas aos amantes, os vinhos tintos e brancos que conhecemos, as milhas que caminhamos (muito mais que duas) ou pedalamos, nos trouxeram, inevitavelmente, até aqui.

Gratidão tem a ver com entender processos. Gratidão não é um relatório no final de um dia, do tipo: “Hoje fez sol e foi um dia lindo de céu azul”. Antes, gratidão é dizer como um certo Renato Russo: “Veja o sol dessa manhã tão cinza”. Gratidão é, antes de tudo, admiração.

Saber reconhecer que há um sol em cada manhã que amanhece cinza, é a recompensa para quem já aprendeu a viver e morrer.

Eu continuava pedalando e os Titãs insistindo: “Toda pedra no caminho, você pode retirar”. Acho que alguém pode se frustrar quando aparecer alguma que não possa ser retirada, não é? Me lembrou um certo Nazareno, pedindo que lhe fosse retirada uma pedra do caminho, se possível. E não foi. Por mais que o Jesus-homem soubesse viver, era preciso que ele demonstrasse sua habilidade de saber morrer. Saber padecer sem escolha, saber “ver o sol dessa manhã tão cinza”.

Me lembro de um outro Paulo. Não o Paulo Miklos, do Titãs, mas o Paulo que era Saulo e que aprendeu a morrer. Depois de tanto viver ele disse: “Sei bem o que é passar necessidade, sei o que é andar com fartura. Aprendi o mistério de viver feliz em todo lugar e em toda e qualquer situação, esteja bem alimentado, ou mesmo com fome, possuindo fartura, ou passando privações.” (Fl 4:12)

Concordo com os dois Paulos. Com o Paulo Miklos, do Titãs, quando exclama: “É preciso saber viver!”. E com o Paulo, que era Saulo, quando diz, em paráfrase: “É preciso saber viver e também morrer.”



Gratidão é admiração. Pelo sol ou pela chuva.

10.11.17

30


Tenho trinta porquês. Na verdade tenho muito mais que trinta.
Hoje estou me sentindo como na música de Sá, Rodrix e Guarabyra:


“Nada no passado, Tudo no futuro,
Espalhando o que já está morto, Pro que é vivo crescer,
Sob a luz da lua, Mesmo com sol claro,
Não importa o preço que eu pague, O meu negócio é viver.”

(Sá, Rodrix e Guarabyra - Jesus numa moto, 2000)



Em três décadas, vivi 3 dias diferentes.
No primeiro dia, era eu a viola e Deus. Metáfora pra o propósito de viver para cultivar, crescer, obedecer papai e mamãe, colorir e descobrir que a vida não acaba nunca.
No segundo dia, começou algo meio bossa nova e terminou meio que rock’n’roll. Ganhei alguns anos a menos de vida e um milhão de certezas.
No terceiro e mais longo dia, tive muitas dúvidas sobre a vida e nenhuma sobreviveu para contar história.


Consegue imaginar Jesus numa moto? Pois é. Eu também!


Sem metáforas: temos pouca coragem de fazer diferente.
E com 30 anos agora, queria mesmo era ser Jesus numa moto.


“Jesus numa moto” é o legado de um homem que usa bota, jaqueta, luvas desgastadas, camiseta branca suja de poeira, barba por fazer, cabelo com cheiro de suor, desgrenhado pelo capacete que aperta a cabeça, calça jeans rasgada de tanto usar, que por trás de tudo isso é pai, pastor, irmão, marido, chora de noite, dorme rápido e acorda fácil. É professor, é aluno. Mas quem olha de longe vê e pensa: “Não passa de um marginal!”


Exatamente, um marginal. Assim como Jesus, numa moto.


“Jesus numa moto” é sentimento de se perder pra se encontrar. Se perder numa estrada perigosa e nada promissora por aí afim de encontrar a vida que vale a pena viver. Não é isso que fazemos?

“Jesus numa moto” é chegar aos trinta anos, maduro. Maduro a ponto de viver duas vidas tão diferentes. Em uma delas, aquela com luvas, jaqueta, capacete e moto, ser feliz integralmente. Na outra, esperar chegar a hora de trocar de roupa e colocar a camisa branca suja de poeira.

Não tenho a moto, nem as luvas, nem o capacete ou a jaqueta. Menos ainda a moto.
Também não sou Jesus.


Mas sou Erick, pai, marido, filho, pastor, irmão, professor e aluno. Já aprendi a andar a segunda milha com mais alegria. Já aprendi a alegria de poder cear com John Lennon, Bob Dylan e Classius Clay. Também já meti um ‘Marlon Brando’ nas ideias e saí por aí. E principalmente, aprendi a uivar numa nova alcatéia. Preso nessa cela de ossos, carne e sangue. No final, espero ansiosamente a hora em que o mundo estanque, pra me aproveitar do conforto de não ser mais ninguém.


Obrigado, Jesus.
Foram emocionantes os últimos trinta anos na estrada de moto com você.
E olha que ainda tem chão.

3.8.17

V de Verdade






Era noite do mês de Nissan na província romana da Judéia, tudo estava calmo. Fawkes reuniu os amigos para alinhar os últimos detalhes do golpe final em que planejavam destituir de uma só vez, a coroa e o sistema religioso. Como bons conspiradores que eram, todos tinham a consciência dos riscos de uma manobra como essa. Um grupo relativamente pequeno, doze pessoas, para um levante inédito na história. Fawkes, porém, tinha a certeza de que o plano daria certo, fora cuidadosamente pensado e desenhado nos mínimos detalhes durante um ano inteiro. A ambição de acabar com o sistema que oprimia os seus compatriotas por séculos não cegou os olhos de Fawkes. Para os outros onze, o plano em si parecia arriscado demais.


Fawkes era um homem inteligente, doce e sisudo. Apelidou a ação como “Plano de Salvação”, afim de confundir as autoridades políticas e levá-los a pensar que se tratava de apenas mais um grupo de dissidentes religiosos do judaísmo. Basicamente, tudo funcionaria como um rasgar do véu que cobria a verdade por trás das estruturas de dominação que emanava do templo judaico e sua péssima atuação conjunta com o domínio romano. Fawkes planejava trazer à tona uma Verdade Libertadora sobre a realidade, insuficiência, ineficácia e fragilidade dos governos instituídos. Outro grupo já havia se arriscado em um plano semelhante, e fracassou por excesso de fundamentalismo. Eram conhecidos como ‘Os Zês’. Lutavam por uma causa perdida. Ou perdidos em sua própria causa.


Todos comiam, bebiam e cantavam enquanto aguardavam a chegada de Fawkes. Petra tomou Jan para um dos cantos da sala e sorrateiramente cochichou:
- Estou pensando em como tudo vai ficar depois... Estou animado, mas confesso que não sei como será amanhã.
Jan deu de ombros, tomou um gole prolongado de vinho e respondeu:
- Precisamos esperar para ver. Essa pode ser nossa última chance.

Enquanto os dois revezavam os olhares entre os que estavam na sala, a porta se abriu e todos olharam ao mesmo tempo e silenciaram. Fawkes chegou, um pouco agitado, parecia nervoso e ansioso. Sentou-se na ponta da mesa, pediu que todos se sentassem e começou um discurso. Ele falava baixo, mas sua voz era embalada pela tensão da véspera do maior acontecimento de sua vida.

“Irmãos e amigos, amanhã será um grande dia. O dia em que finalmente a Verdade libertará nosso povo. O dia em que finalmente cumprirei o propósito para o qual fui enviado a este mundo. Quero que saibam que aconteça o que acontecer, eu nunca estarei longe. Essa refeição que faremos agora serve para celebrar a nossa amizade, nossa prisão, nossos dias de martírio e nossa liberdade. O templo será destruído. Roma ruirá. Os poderes serão todos destruídos e entre vocês não terá domínio de um sobre o outro. Esta é a Verdade. Todos que ouvirem essas palavras poderão celebrar a saída definitiva da escravidão.”


Todos se olharam confusos e amedrontados com estas primeiras palavras. Alguns não entenderam mas ainda assim foram tomados de temor. Outros entenderam, mas não conseguiram compreender a dimensão do que estava para acontecer. Havia apesar disso um sentimento unânime entre eles: aquela era a Verdade.


Após a festa, todos seguiram para um local secreto no alto de um dos montes que ficavam a cerca de um quilômetro do centro da cidade. Fawkes sentou em uma das pedras, afastado de todos. Já sabia o que estava para enfrentar e já sabia que não seria fácil. Ele morreria pela causa natal. E ao mesmo tempo sabia que não poderia ser morto. Fawkes já não era mais só. Ele era muitos. Era anônimo, porque todos eram ele.
Já sabendo de tudo, do processo e do final, Fawkes olhou para cima e abriu os braços. Sentiu o silêncio profundo do vale que deitava-se aos pés do monte e marcou o interlúdio com uma sincera lembrança de sua mãe orando antes de dormir:


“A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; porque atentou na baixeza de sua serva; pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque me fez grandes coisas o Poderoso; e santo é seu nome. E a sua misericórdia é de geração em geração sobre os que o temem. Com o seu braço agiu valorosamente; dissipou os soberbos no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.”



Ele nunca esqueceu essas palavras. Antes, as ouvia todo dia. E, sempre que se lembrava delas, sabia que estava fazendo a coisa certa. Cresceu em lar libertário. Cresceu e viveu em revolução anárquica. Andou desejoso por igualdade e justiça contra toda dominação e exploração.


A proposta do Reino de Deus, não deixa pedra sobre pedra. Não permite que estruturas de arkhos se sustentem. Na conclusão de um processo histórico, todas as estruturas de poder serão demolidas. A mensagem do evangelho faz com que os governos se tornem obsoletos. Quando todas as coisas se sujeitarem a Cristo, inclusive as civilizações, comunidades, nações, pequenos grupos ou até mesmo indivíduos, então, Ele mesmo “se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28).


A fé apostólica era uma fé libertária e subversiva por excelência. Eles sabiam que toda autoridade exercida deveria passar pelo filtro da consciência e da manutenção da relação igual sob o senhorio de Cristo. O mesmo Paulo que nos advertiu a que nos submetêssemos às autoridades afirmou que agora mesmo os poderosos deste mundo “estão sendo reduzidos a nada” (1 Coríntios 2:6). Jesus é aquele com o cetro de ferro pronto para quebrar toda estrutura de poder. O anúncio da boa nova do reino é seguido pela denúncia das estruturas hierárquicas que visam manter os homens num cativeiro. E para nós não se trata de uma intervenção sangrenta mas de uma insurreição pacífica, motivada exclusivamente por amor. Para nós o reino não é apenas um ‘A’ de anarquia. Antes de tudo é um ‘V’ de Verdade.


V de Verdade
(por Erick Freire - Desconstrução)

10.11.16

29 de 78 – Um ensaio sobre anos, aniversário e 'talvez'





Uma vida inteira investida em significar. Nascemos assim, buscamos assim, crescemos assim e morremos por isso. Uma vida inteira buscando significar a vida. Talvez o objetivo da vida seja morrer tentando achar seu significado. Talvez o objetivo de uma boa vida, seja morrer sem encontrá-lo. Talvez a plenitude da vida seja viver pelo que ela significa. E pra mim a vida significa morrer. E mais uma vez: nascemos assim, buscamos assim, crescemos assim e assim vamos morrendo.

Quando achamos que sabemos de algo, descobrimos que não se trata do que sabemos, mas do que somos. Eu sei que sou sabido, mas não sou sabido do meu ser. Talvez encontre em certezas, salvação. Talvez encontre em tantas certezas, morte. Acima de tudo, tenho fé que um dia os anos me tirem a habilidade de escrever ‘talvez’ tantas vezes.
Fé é esperar na estação pelo trem que não passa com a certeza de que um dia ele chegará. Sem talvez. Ele apenas chegará!


De uns dias pra cá tenho caminhado bastante, se em carne não sei, Deus o sabe. Acontece que de nada adianta levar nas costas os anos de ‘talvez’ nessa caminhada. Talvez não diga mais talvez.


Esse ano foi duro, mas como dizem “Grandes mudanças são antecedidas pelo caos.” Seja como for, eu amadureci muito do ponto de vista intelectual, moral e emocional nesse espaço de tempo que me foi concedido por Deus para “agir e fruir” como dizia Freud. Sinto-me mais sereno. Ás vezes, a gente leva mais tempo do que pretendíamos para colocar a cabeça no lugar, definir um projeto de vida e lutar para realizá-lo. Mas quando finalmente estamos prontos, sentimos em nosso ser uma confiança renovadora. Queridos, nessa vida podemos ser o que quisermos e devemos escolher ser o melhor que pudermos. Podemos fazer o que quisermos e devemos escolher fazer aquilo que amamos e nos faz feliz. Podemos ficar com quem quisermos e devemos escolher ficar com quem faz nosso coração correr como um campeão olímpico.


Também chega um tempo na vida de um homem em que ele já viu relativamente tudo e agora pode selecionar o que é melhor aos seus olhos, aquilo que toca o mais primordial do seu ser. E a vida torna-se mais limpa, mais enxuta e mais palpável. Aperfeiçoei audaciosamente a fórmula do Freud para essa versão: “agir e amar”. A bíblia me deu, por outro lado, “amar e agir”. Amar no sentido mais profundo, ético e cristão. Amar e respeitar, amar e perdoar, amar e pacificar. Se agir primeiro do que amar ou vice-versa, não sei. Depende do que o momento pedir, depende do que o próximo pedir, depende do que os anos terão me ensinado.


Em suma, estou mais velho, é verdade, mais também estou mais maduro, mais forte e mais saboroso como um bom vinho. E mais amável. Como dizia o Russo, de Brasília: “Aprendi a perdoar e a pedir perdão”.


Talvez velas se acendam hoje, coros cantem “Parabéns pra você” e a pessoas me peçam para assoprar a vela e fazer um pedido. Eu porém vos digo: que se acenda, no interior de cada um de vocês, a LUZ. Não de vela, mas de Graça! Não uma que possa ser apagada pelo meu sopro, uma porém que possa me salvar de minhas escuridões quando eu precisar.


Enfim os anos não podem mentir. Já vivi 29 de 78.


Que nos próximos 49, haja lucidez. Lucidez para enxergar os presentes que recebemos e poucas vezes enxergamos. Lucidez para valorizar o que nos pertence de fato. Lucidez para aceitar o fim de um tempo e o começo de outro, diferente, mas nem por isso pior. Lucidez para acolher o que é verdadeiro, real e provido de sentido.
Lucidez para amar e ser amado. Lucidez para finalmente permitir que o amor nos salve da vida.


Sobre o sentido da vida, sem talvez, apenas uma certeza: é pra frente!



Erick Freire.

17.8.16

Syd Barret: O Diamante Louco

Uma mente louca e brilhante foi a responsável por uma das maiores obras da história da música. Syd Barret com certeza contribuiu com sua arte como guitarrista, vocalista, compositor, produtor e pintor, mas acima de tudo, sua loucura foi o norte da bússola do Pink Floyd como conhecemos hoje. A genialidade de Gilmour, Waters, Mason e Wright foram de extrema importância para traduzir a experiência que Barret acabou vivendo de uma forma profunda demais. O diamante louco continuou brilhando, afinal.



Roger Keith Barret, ou apenas Syd Barret, como era e é conhecido até hoje pelos amantes da boa música, foi um excelente cantor, guitarrista, pintor e produtor, mas acima de tudo seu maior talento e contribuição para o mundo da música foi também o que o destruiu: sua própria vida. Sua loucura transformada em inspiração, moldaram aquele experimento audacioso e perigoso que se perpetuou em nossos cases e estantes chamado Pink Floyd.

Imagino que o choque das artes de Barret o transformaram no músico mais visionário e brilhante de todos os tempos. Um verdadeiro norte na bússola de Waters e Gilmour. Sua loucura brilhou em nossos ouvidos, transformando a música em cores, imagens e épocas. Como um diamante que vai de encontro a luz projetando-a em milhares de direções. Como o prisma na capa de Darkside Of The Moon. Aquela capa é o retrato de Barret!

Por mais que os dois precoces anos que permaneceu na formação da banda pareçam insignificantes diante a história que o Floyd faria nos próximos anos, foram graças a esses dois míseros e mal aproveitados anos que a escrita de Waters e Gilmour encontraram os segredos que perturbavam a insana e cansada mente de Syd. Quando ouço (e assisto) o DVD Live At Pompeii, fazer uma analogia é inevitável: a mente de Barret sendo esmagada pelo Vesúvio cósmico, épico e espiritual que era a proposta do Floyd. Sou transportado àquela cidadela imediatamente e posso senti-la ruindo a cada acorde.




O Tea Set, nome do primeiro ensaio de formação que originou o Pink Floyd, nunca foi suficiente para a grandeza da loucura que destruía a mente de Barret. Ele próprio não seria capaz de traduzir através da música de uma forma tão grandiosa o que o deixava por vezes estático no palco, olhando para um ponto fixo e tocando um único acorde em sua guitarra. Os expectadores, aqueles que viviam na terceira pessoa a loucura de Syd, não fizeram nada além de falar tudo o que viram, ouviram, sentiram e descobriram através de sua vida. Muitas pessoas falam muita coisa sobre Syd Barret. Que a lisergia o destruiu por completo. Que ele ‘obteve muito conhecimento de uma só vez’, como disse David Gilmour uma vez. Dizem coisas boas e coisas ruins. Eu só sei de uma coisa, depois da loucura de Barret tivemos: Meddle, Darkside Of The Moon, Wish You Were Here e a obra máxima, explícita e descritiva da vida de Barret, Shine On You Crazy Diamond. Cada acorde dos solos de Gilmour fala sobre ele. Cada uma das nove partes da música gritam pelo seu nome e dizem: ‘Se lembra como você brilhava? Brilhava como o sol! Brilhe, brilhe! Apenas brilhe.’



O Pink Floyd gera em nós uma estranha sensação de que a banda nunca acabou nem nunca mais vai acabar. Não sei se pelo fato de seus integrantes partirem com glória, aos poucos. Não sei se pelo ativismo humanista de Roger Waters hoje, ou pela mansidão de Lorde Gilmour. Não sei se por sua obra ser como Syd, um ‘diamante louco’, resistente, infinito. Talvez pela força da música dos caras em si, algo que não parece pertencer a este mundo.

Enquanto houver um pouco da loucura de Barret, sua obra, onde quer que seja reproduzida e da forma como for, saberemos que um dia brilhou o diamante louco.

Erick Freire.

Steven Wilson: genial e influente

(Steven Wilson)

Como se não bastasse tamanho conhecimento e inteligência musical para escrever, tocar, produzir ou experimentar, Steven Wilson ainda é amigo das pessoas certas. Um gênio influente que deixa sua marca por onde passa.

O jovem, genial, influente, multifuncional, original e frontman nato Steven John Wilson foi responsável por mais da metade de todas as realizações musicais que tem ocupado os ouvidos mais exigentes dos últimos anos. Pelo menos dos últimos 20 anos, sim. Quando pensamos que acabou sempre surge algo novo de sua mente brilhante.

Guitarrista, engenheiro de som e produtor por paixão, Wilson norteia sua carreira musical baseado naquilo que ele gosta de ouvir e não naquilo que é comercialmente aceito pelas rádios e festivais mundo afora. Em seu primeiro trabalho, como fundador da banda Porcupine Tree, dá pra perceber o quanto ele não se importa em ser comercial. Com letras inspiradoras, melodias que beiram o simples e esbarram na perfeição de um som extremamente detalhista, o Porcupine seguiu como sua mais popular empreitada. Não sei como ele conseguiu, mas transformou uma mistura de rock progressivo, experimentalismo e rock psicodélico em algo sólido e muito bem definido. Segundo ele próprio afirma, o grande mistério da qualidade dos trabalhos não está na complexidade do som em si, mas na forma como é concebido, montado e produzido. O Porcupine Tree foi indicado ao Grammy de melhor álbum em surround sound com ‘The Incident’, um trabalho conceitual autoral de Wilson, baseado em obras como ‘The Darkside Of The Moon’ e ‘Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band’ e considerado pelos fãs como sua melhor concepção.

Com grande parte de seu tempo dedicado a estúdios em casa, Wilson teve tempo de criar, inventar, aprender e produzir, coisas que não faria se estivesse pagando um estúdio profissional para gravar ou produzir um trabalho específico, justamente pela falta de tempo. Percebemos isso ainda mais quando escutamos os seus trabalhos autorais em carreira solo. É como se ele estivesse sozinho com suas aspirações, sentado em um estúdio discutindo consigo política, amor, religião, institutos e preferências musicais.

Morando dias em Hemel Hempstead, Londres, respirando o ar de uma cidade construída pós segunda guerra mundial, dias em Tel Aviv, com sua cultura inspiradora por si só, ampliou seus relacionamentos com a música e estreitou relações com o músico israelense Aviv Geffen até formar com ele o projeto Blackfield, que segundo afirma Geffen ‘não pode ser considerado rock progressivo, por não deixar Wilson solar mais de dois minutos na guitarra’ e ‘definitivamente não pode ser considerado pop’. Um som muito dinâmico e ao mesmo tempo reto, com melodias e letras que nos fazem refletir na forma como enxergamos a música e a forma como ela é feita. Ideal para longas viagens de carro.


(Steven Wilson e Aviv Geffen)


Seus dias em Tel Aviv lhe presentearam também com a oportunidade de conhecer Kobi Farhi, (ou foi Farhi quem foi presenteado, difícil dizer) frontman da banda de midwestern progressive metal, Orphaned Land e mixar aquele que foi considerado pela Metal Storm, o melhor álbum de metal progressivo de 2010, o ‘The Never Ending Way Of ORWarriOR’, que fala sobre a eterna batalha entre a luz e a escuridão. Além da mixagem do álbum Steven Wilson participou das gravações do DVD ao vivo da banda em Tel Aviv, cantando ‘M I?’.


(Kobi Farhi e Steven Wilson)


Se ainda não está suficiente para explicar tamanha influência e ativismo como músico, produtor e compositor, recentemente Wilson lançou o Storm Corrosion, álbum conceitual, com ninguém menos que Mikael Akerfeldt, frontman do Opeth, que o foi apresentado por seu amigo Jonas Renkse, vocalista e fundador da banda de doom metal Katatonia. Segundo ele, o álbum é um experimento musical único, fruto de uma parceria de influências trocadas entre eles. E realmente funcionou! É possível sentir na pele a concepção da obra. Ainda em contato com Mikael, Steven Wilson foi o responsável pela produção e mixagem do álbum mais melódico e bem produzido do Opeth, o ‘Damnation’, que mais tarde ganhou uma versão em DVD ao vivo gravado em Estocolmo, cidade natal da banda.


(Steven Wilson e Mikael Akerfeldt)

É impossível falar de toda a obra de Steven Wilson em poucas linhas ou poucas páginas. Suas conexões, participações, produções, criações e influências parecem não ter mais fim, por isso sua genialidade pode ser sentida em cada álbum ou faixa que leva seu nome. Um artista ‘multiplural’ que merece entrar nos anais da música, e não apenas do rock progressivo, como um dos principais colaboradores das últimas duas décadas. Não citá-lo em listas, premiações e artigos sobre o tema é deixar de reconhecer a importância de sua obra, de seus conhecimentos musicais e de sua habilidade em fazer os amigos certos. Não se lembrar de Steven Wilson em uma mesa redonda sobre música, é não reconhecer a própria capacidade de apreciar o que é bom.

Erick Freire.