27.11.17

É preciso saber morrer



Hoje o dia amanheceu cheio de graça. Enquanto pedalava para o trabalho, ouvindo uma playlist de música que gosto de ouvir quando estou grato, começou a tocar uma música linda dos Titãs que insistia em seu refrão: É preciso saber viver!
Pensei: é preciso mesmo! Mas enquanto continuava pedalando, com um pulgueiro inteiro atrás da orelha, refletia sobre as implicações disso em minha vida. Comecei então a construir uma ideia tão difícil quanto a necessidade de ‘saber viver’. A necessidade de saber morrer.

Gratidão não tem a ver com o dia que amanhece ensolarado ou com o céu nublado, chuva e tempestade de relâmpagos. Gratidão tem a ver com a condição de perceber as mudanças climáticas e entender (ou nem sempre) porque elas acontecem. Gratidão tem a ver com a capacidade de sentir cada gota de chuva molhando a pele ou o conforto dos raios de sol esquentando do frio. Gratidão tem a ver com a vida, mas também com a morte. E quando digo morte, não quero que confunda com o fim de tudo. Quero traçar um paralelo entre perdas e ganhos. Perdas e ganhos são como os dois trilhos de uma ferrovia, andam sempre juntos e se encontram no horizonte. Ora, não é lógico? Só morre quem está vivo. E no contexto da música, é preciso saber viver para que quando a morte chegar você olhe ela nos olhos, sorria e agradeça. Pois toda a nossa vida, tudo que fizemos, os jantares com amigos, as cartas aos amantes, os vinhos tintos e brancos que conhecemos, as milhas que caminhamos (muito mais que duas) ou pedalamos, nos trouxeram, inevitavelmente, até aqui.

Gratidão tem a ver com entender processos. Gratidão não é um relatório no final de um dia, do tipo: “Hoje fez sol e foi um dia lindo de céu azul”. Antes, gratidão é dizer como um certo Renato Russo: “Veja o sol dessa manhã tão cinza”. Gratidão é, antes de tudo, admiração.

Saber reconhecer que há um sol em cada manhã que amanhece cinza, é a recompensa para quem já aprendeu a viver e morrer.

Eu continuava pedalando e os Titãs insistindo: “Toda pedra no caminho, você pode retirar”. Acho que alguém pode se frustrar quando aparecer alguma que não possa ser retirada, não é? Me lembrou um certo Nazareno, pedindo que lhe fosse retirada uma pedra do caminho, se possível. E não foi. Por mais que o Jesus-homem soubesse viver, era preciso que ele demonstrasse sua habilidade de saber morrer. Saber padecer sem escolha, saber “ver o sol dessa manhã tão cinza”.

Me lembro de um outro Paulo. Não o Paulo Miklos, do Titãs, mas o Paulo que era Saulo e que aprendeu a morrer. Depois de tanto viver ele disse: “Sei bem o que é passar necessidade, sei o que é andar com fartura. Aprendi o mistério de viver feliz em todo lugar e em toda e qualquer situação, esteja bem alimentado, ou mesmo com fome, possuindo fartura, ou passando privações.” (Fl 4:12)

Concordo com os dois Paulos. Com o Paulo Miklos, do Titãs, quando exclama: “É preciso saber viver!”. E com o Paulo, que era Saulo, quando diz, em paráfrase: “É preciso saber viver e também morrer.”



Gratidão é admiração. Pelo sol ou pela chuva.

2 comments:

  1. “É preciso saber viver e também morrer.”
    Muito massa mano...

    ReplyDelete
  2. Lembrei da parte que diz: "a coroa da vida". O prazer de estar vivo. A gratidão é a entrega, é o estender a mão ao que está cansado. Gratidão é regar sua plantinha com gotinhas frescas d'água, sem esperar que um dia ela abra uma boquinha e lhe diga obrigado. Ela florida já é a gratidão. Simples, mais simples do que se busca. Como o cheiro do café passado.

    ReplyDelete