3.8.17

V de Verdade






Era noite do mês de Nissan na província romana da Judéia, tudo estava calmo. Fawkes reuniu os amigos para alinhar os últimos detalhes do golpe final em que planejavam destituir de uma só vez, a coroa e o sistema religioso. Como bons conspiradores que eram, todos tinham a consciência dos riscos de uma manobra como essa. Um grupo relativamente pequeno, doze pessoas, para um levante inédito na história. Fawkes, porém, tinha a certeza de que o plano daria certo, fora cuidadosamente pensado e desenhado nos mínimos detalhes durante um ano inteiro. A ambição de acabar com o sistema que oprimia os seus compatriotas por séculos não cegou os olhos de Fawkes. Para os outros onze, o plano em si parecia arriscado demais.


Fawkes era um homem inteligente, doce e sisudo. Apelidou a ação como “Plano de Salvação”, afim de confundir as autoridades políticas e levá-los a pensar que se tratava de apenas mais um grupo de dissidentes religiosos do judaísmo. Basicamente, tudo funcionaria como um rasgar do véu que cobria a verdade por trás das estruturas de dominação que emanava do templo judaico e sua péssima atuação conjunta com o domínio romano. Fawkes planejava trazer à tona uma Verdade Libertadora sobre a realidade, insuficiência, ineficácia e fragilidade dos governos instituídos. Outro grupo já havia se arriscado em um plano semelhante, e fracassou por excesso de fundamentalismo. Eram conhecidos como ‘Os Zês’. Lutavam por uma causa perdida. Ou perdidos em sua própria causa.


Todos comiam, bebiam e cantavam enquanto aguardavam a chegada de Fawkes. Petra tomou Jan para um dos cantos da sala e sorrateiramente cochichou:
- Estou pensando em como tudo vai ficar depois... Estou animado, mas confesso que não sei como será amanhã.
Jan deu de ombros, tomou um gole prolongado de vinho e respondeu:
- Precisamos esperar para ver. Essa pode ser nossa última chance.

Enquanto os dois revezavam os olhares entre os que estavam na sala, a porta se abriu e todos olharam ao mesmo tempo e silenciaram. Fawkes chegou, um pouco agitado, parecia nervoso e ansioso. Sentou-se na ponta da mesa, pediu que todos se sentassem e começou um discurso. Ele falava baixo, mas sua voz era embalada pela tensão da véspera do maior acontecimento de sua vida.

“Irmãos e amigos, amanhã será um grande dia. O dia em que finalmente a Verdade libertará nosso povo. O dia em que finalmente cumprirei o propósito para o qual fui enviado a este mundo. Quero que saibam que aconteça o que acontecer, eu nunca estarei longe. Essa refeição que faremos agora serve para celebrar a nossa amizade, nossa prisão, nossos dias de martírio e nossa liberdade. O templo será destruído. Roma ruirá. Os poderes serão todos destruídos e entre vocês não terá domínio de um sobre o outro. Esta é a Verdade. Todos que ouvirem essas palavras poderão celebrar a saída definitiva da escravidão.”


Todos se olharam confusos e amedrontados com estas primeiras palavras. Alguns não entenderam mas ainda assim foram tomados de temor. Outros entenderam, mas não conseguiram compreender a dimensão do que estava para acontecer. Havia apesar disso um sentimento unânime entre eles: aquela era a Verdade.


Após a festa, todos seguiram para um local secreto no alto de um dos montes que ficavam a cerca de um quilômetro do centro da cidade. Fawkes sentou em uma das pedras, afastado de todos. Já sabia o que estava para enfrentar e já sabia que não seria fácil. Ele morreria pela causa natal. E ao mesmo tempo sabia que não poderia ser morto. Fawkes já não era mais só. Ele era muitos. Era anônimo, porque todos eram ele.
Já sabendo de tudo, do processo e do final, Fawkes olhou para cima e abriu os braços. Sentiu o silêncio profundo do vale que deitava-se aos pés do monte e marcou o interlúdio com uma sincera lembrança de sua mãe orando antes de dormir:


“A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; porque atentou na baixeza de sua serva; pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque me fez grandes coisas o Poderoso; e santo é seu nome. E a sua misericórdia é de geração em geração sobre os que o temem. Com o seu braço agiu valorosamente; dissipou os soberbos no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.”



Ele nunca esqueceu essas palavras. Antes, as ouvia todo dia. E, sempre que se lembrava delas, sabia que estava fazendo a coisa certa. Cresceu em lar libertário. Cresceu e viveu em revolução anárquica. Andou desejoso por igualdade e justiça contra toda dominação e exploração.


A proposta do Reino de Deus, não deixa pedra sobre pedra. Não permite que estruturas de arkhos se sustentem. Na conclusão de um processo histórico, todas as estruturas de poder serão demolidas. A mensagem do evangelho faz com que os governos se tornem obsoletos. Quando todas as coisas se sujeitarem a Cristo, inclusive as civilizações, comunidades, nações, pequenos grupos ou até mesmo indivíduos, então, Ele mesmo “se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28).


A fé apostólica era uma fé libertária e subversiva por excelência. Eles sabiam que toda autoridade exercida deveria passar pelo filtro da consciência e da manutenção da relação igual sob o senhorio de Cristo. O mesmo Paulo que nos advertiu a que nos submetêssemos às autoridades afirmou que agora mesmo os poderosos deste mundo “estão sendo reduzidos a nada” (1 Coríntios 2:6). Jesus é aquele com o cetro de ferro pronto para quebrar toda estrutura de poder. O anúncio da boa nova do reino é seguido pela denúncia das estruturas hierárquicas que visam manter os homens num cativeiro. E para nós não se trata de uma intervenção sangrenta mas de uma insurreição pacífica, motivada exclusivamente por amor. Para nós o reino não é apenas um ‘A’ de anarquia. Antes de tudo é um ‘V’ de Verdade.


V de Verdade
(por Erick Freire - Desconstrução)

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